domingo, 28 de junho de 2015

"Flor da Madrugada"



A porta bateu. Manu me olhou, chegou mais perto e me deu um beijo carinhoso. De todas as minhas netas, era a mais parecida comigo.

Minhas filhas ficavam intrigadas: "Como essas meninas podem ser tão apegadas à você, mãe?" Elas não compreendiam. Nunca fui uma avó do tipo "boa velhinha".

Manu estava esperando. Gostava de ficar a sós comigo. Gostava, mais do que as outras, de ouvir minhas histórias. Dizia que iria se tornar escritora para poder contá-las. Queria saber de todas as viagens, das aventuras, das gargalhadas. Sempre na companhia de seu avô. Queria saber das coisas cotidianas, que tornavam minha vida toda especial.

Tínhamos nossos segredos. O mais precioso deles era uma história. Sempre que nos encontrávamos assim, ela pedia: "Vovó, conta a história da Flor da Madrugada!?"

Apesar dos tempos mudados, ela era uma adolescente cheia de sonhos. Aos 16 anos, com o corpo perfeito, era exatamente a imagem do que eu era nessa idade.

Ela preparava o ambiente, colocava uma música do Chico, sentava-se nos almofadões no chão, segurava minha mão e pedia: "Flor da Madrugada, vovó."

Flor da Madrugada

"Ele foi embora com um: 'Se cuide'. Abri a janela para um último adeus. Seguiu seu caminho, correndo, sem olhar para trás. A chuva molhava meu rosto e o vento de tempestade embaralhava meus cabelos. Um verdadeiro alívio para aquela madrugada de verão.

O vento assobiava alguma canção conhecida. Para ouvi-la de perto, resolvi ir ao jardim. "Na Boca da Noite", sem dúvida! Irresistível! Embalada: eu dançava na chuva... sorria e dançava.

Rodava e lembrava do tempo em que ele era apenas um menino bonito. Das cenas de ciúme, do acelerar do coração a cada toque do telefone. Da sua voz marcante de tenor. Do seu ser grandioso, sem ser majestade.

Veio a vertigem e ao deitar exausta na grama, dei-me conta que passaram-se anos.

A chuva já caia suave e silenciosa. Ia lavando seu cheiro que marcava cada parte do meu corpo, até ele misturar-se ao gosto da terra. Dormi encharcada.

Sonhei com seus abraços e seus beijos. Ao amanhecer, meu corpo ainda respondia aos prazeres da madrugada.

Na noite seguinte despertei com um perfume intenso. Noite estrelada, com luar pálido que iluminava o jardim. Nem sinal da tempestade. Fechei os olhos e deixei o odor me guiar. No exato lugar daquela dança sensual da madrugada anterior, havia uma flor. Graúda e vermelha. Passei horas admirando e sentindo seu perfume inebriante. Assim adormeci.

O sol aqueceu meu rosto e acordei sem sobressaltos: mais um dia de trabalho. Ao sair de casa, não resisti e fui procurar a flor no jardim. Ela sumira mas seu perfume, único e sexual, vestiu meu corpo durante dias. Naquela manhã resolvi mudar minha vida.

Todos os dias olho para o jardim. Escuto, num sussurro, sempre a mesma pergunta, que me acompanha onde quer que esteja."

Então, como num ritual, Manu me perguntava: "Quem é ele? Ele voltou? Qual a pergunta que você ouvia?" E que eu respondia sempre da mesma maneira: "Um dia, Manu, te conto essa história..."

Neste momento o telefone tocou e Manu saiu correndo.

Olhei pela janela para ver o sol se por. Via nitidamente seu rosto. Onde estaria? Seria feliz? Nos perdemos no passado. Num passado muito, muito distante.

sábado, 20 de junho de 2015

Por quê?

Ilustração: Marcella, 10 anos

Para quem você mente? Que seria de nossa vida se não corrêssemos riscos desnecessários? Muitas vezes, o que achamos desnecessário é justamente aquilo que mais nos falta e negamos por pura covardia, não é?

Por que precisamos medir nossas vidas por erros e acertos? Esse sistema não nos limita por que enquadra? Por que na vida tudo precisa ter foco? Por que gostamos mais das certezas do que das dúvidas?

Por que quase sempre caminha sozinho? Onde guardou os olhos que brilhavam para a vida? Por que deixou a poesia trancada na gaveta? Por que escolheu viver em teses? Por que deixou a paixão pela lua e hoje só olha para o chão? O que te encanta? Que canção não sai da cabeça? Ou só ouve notícias?

Por que não cheira as flores ou os amores? Por que não ri das piadas? Por que alimenta ausências? Por que as retas e não as curvas? Por que de tanto no concreto? Por que razão?

Por que não de tanto viver? 

Por que não?

Por quê?

terça-feira, 9 de junho de 2015

Réstia de luz




Não conseguia enxergar nada. Tinha desistido de nadar e só boiava. Boiava com a esperança que as nuvens dançassem aos pares para poder vislumbrar as estrelas, mesmo sabendo que ao olhá-las provavelmente muitas delas já não existiriam. Mas deixariam um rastro de luz.

Queria uma fonte luminosa, mesmo que fosse apenas um ponto. Porque um ponto é o início de um traço e um traço indício de um caminho.

Fechou os olhos. Quem sabe ainda tinha retida na lembrança alguma imagem de um pouco de calor. O frio que sentia não era normal. Paralisava ao mesmo tempo que fazia tremer. Se tremia, então estava vivo. Se vivo, conseguia ver. Se via, podia deslumbrar-se. Valia a pena enfrentar o pânico de abrir os olhos.

Continuava escuro. Nada mudara no céu. De repente sentiu algo: cócegas nos pés. E aquela corrente gostosa de coceira foi subindo por suas pernas. Queria se mexer, sentir seu corpo vivo. Então podia se movimentar e resolveu mergulhar profundamente numa água com temperatura bem agradável. Foi até um mundo submerso cheio de formas e cores. Nadou entre seres imaginários e cenários deslumbrantes. Quando faltou oxigênio, sabia que precisar voltar a superfície.

Encheu o pulmão de ar e quando estava se preparando para mergulhar novamente, notou que algo estava diferente. Sentia atrás de si uma luz que formava uma sombra. Virou-se mas nada encontrou. De onde vinha a luz? De suas costas. Uma lua brotava em suas costas. 

Pela primeira vez em muito tempo desenhou um sorriso. Porque se existia luz, existia sol. Era uma questão de tempo. Era esperar o despertar do dia. Um sol nasceria em seu peito.

domingo, 7 de junho de 2015

70 anos de Mamãe.




Hoje ela completa 70 anos. Sempre foi, para mim, um exemplo de mulher: trabalhou muito, cuidou de três filhos, de um casamento e sobrou como Gente! É admirada e querida onde passa. Impressionante: quem a conheceu jamais a esquece!

De riso fácil e doce. De fala mansa. Mas alerta e ativa. Eu e meus irmãos brincávamos: "Ela era como a formiga atômica!" Não era ela quem nos levava ao parque ou ao cinema. Essa era a tarefa de meu pai. Ela era responsável pelo suco de vinho, pelo doce de goiaba e por assinar os boletins.

Diziam meus irmãos: a chinelada dela não doía. E riam-se.

Durante minha adolescência permaneceu discreta. Aliás, como sempre foi. Nunca interferiu em minhas escolhas mas estava sempre perto quando meus caminhos foram tortuosos. Ela se aconchegava e sempre dizia palavras ternas e cheias de esperança.

Hoje leva uma vida tranquila, numa cidade de interior. Voltou às origens. Acalmou. Curte as plantas e deu para fazer cachecol e panos de prato. Aos 70 anos não tem vaidades, gosta dos cabelos brancos e sua maior alegria é rir das gracinhas da neta. Com ela brinca de roda e faz batuque com as panelas.

Escrevo ao som de uma das passagens preferidas:" O Coro dos Escravos" de Giuseppe Verdi. Me apossei de seu CD que um dia me mostrou e disse: "Essa filha, é uma das passagens que mais gosto  e que mais me comove." Furtei para nunca esquecer.



Obrigada, mãe! Sou mais profissional, mais mulher, mais Gente porque aprendi com você! Ensinamentos para a vida toda, de mãe para filha.