quinta-feira, 26 de março de 2015

Caros amantes


Chico, Chico e mais Chico...



 Ela escolheu a trilha sonora toda do Chico Buarque. Era de sabor marcante, Quando ele chega, na hora marcada, corrida, já não há mais tempo para romance. Os amantes se encontram. Está tocando "Sem Fantasia".

- Não quero falar nada! Não me pergunte nada! - diz o amante.

Ela está tão perto. Tão perto que não existe espaço para nenhuma palavra.

A urgência do toque, dos beijos ardentes, indecentes e por fim o calor de dois corpos que falam melhor deitados, perdidos, entrelaçados e pedintes. Pedem pelo tempo que nunca existiu. Pelo amor que não brotou. Pela vida que não levaram juntos.

Porque o prazer só fala bem a língua do corpo.

- Eu te desejo! - fala o corpo dele.

- Não vou a lugar nenhum! - ouve a resposta do corpo dela.

"Tatuagem", "O Meu Amor"... "O que será?"... É o auge! Na troca de olhares, no suspiro dos últimos gemidos, antes da plenitude, que só quem se entrega de verdade pode sentir.

Nos braços e nas pernas, porque já não sabem qual é de quem, escutam "Todo Sentimento". Ela olha para ele. Ele fecha os olhos e respira fundo.

- O que você está pensando?

Enquanto, morrendo de medo, ela espera o início da música "Eu te Amo". Espera. Espera.

"Na Carreira", dão risada lembrando os tempos passados. Ela aguarda. Aguarda.

E ele se cala. Pensa o que não precisa falar. Porque não há "Pedaço de Mim" na trilha sonora, ele tem certeza!

E ela anseia, anseia.

Ele, exausto, dorme. Ela senta na beira da cama, com a cabeça baixa. Estão nus. A voz do Chico entra em seus ouvidos. A última canção: "Futuros Amantes". Nos últimos versos:

"Não se afobe não
Que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá 
Se amarão sem saber
Com o amor que um dia
Deixei pra você"

Um única lágrima, envergonhada, tímida mas teimosa, insiste, salgada, em molhar o doce rosto da moça.

Os primeiros raios de sol entram pela janela.

Ele dorme o sono dos justos e cansados.


terça-feira, 17 de março de 2015

"Irises", a caneca.

"Irises", a caneca. Presente de minha amiga Renata.



Casaram-se mas sem a Igreja. Também não fizeram festa. Foram direto para a lua de mel, na Holanda. Foi lá que Nando deu a vigésima sétima caneca da coleção de Malu: a reprodução cilíndrica de "Irises" de Vicent van Gogh.

Porém Malu não as expunha em armários com vidro e chaveadas. Todo domingo trocava dez ou quinze delas e colocava no armário da cozinha, ao lado da cafeteira.

No início Nando achava aquele comportamento totalmente sem sentido. Como era possível sua esposa, tão prática e racional, ter um hábito tão estranho? Malu era bem resolvida e dificilmente falava sobre sentimentos. Poupava-os de muitas brigas. Vivia muito bem, obrigada.

O tempo foi virando suas páginas e Fernando foi ficando incomodado pois elas se moviam antes dele ler os últimos parágrafos. O sentimento que antes era sólido, invariável, passou a ser uma incômoda incógnita.

Ele não sabia o que Maria Luisa sentia. Quando tentavam conversar sobre sentimentos era assim: ele em grego e ela em egípcio antigo. Parecia não existir tradutor.

Foi numa manhã de domingo que Nando encontrou sua pedra roseta. Malu estava de ressaca, com uma enxaqueca terrível. Ao fazer a troca das canecas, derrubou uma vermelho-sangue que se espatifou no chão. Ela ficou furiosa e Nando curioso. Nunca a vira tão descontrolada.

Então criou uma tese maluca em que o humor da sua esposa era medido pela escolha da caneca que ela fazia pela manhã. Aprimorou sua tese colocando mais uma variável: a bebida que ela colocava na caneca. Assim:

caneca Irises + chá de hortelã = dia fresco, agradável e cheio de carinho;

caneca vermelha (ela comprou outra) + café extra forte = não chegue muito perto pois vai sobrar para você!

Nando sempre acordava antes de Malu. Gostava de vê-la preparando sua bebida matinal : a previsão do humor. Sabia, por exemplo, o quanto ela era feliz com ele: a caneca Irises nunca era trocada. Estava sempre lá e era muito utilizada. Ok, as vezes com chá de carqueja ou de boldo mas na maioria das manhãs, com uma bebida suave, doce e quente.

Nunca falou com Malu a respeito de sua teoria das canecas. Não sabia como ela iria reagir: com risos ou desdém. Como funcionava bem para ele, nada disse.

Nando era muito organizado e começou a separar as canecas por cor, forma e tamanho. Malu trocava as canecas nas manhãs de domingo e Nando as arrumava antes de dormir.

Foi no final de abril, depois de cinco anos de casados, que reparou em uma pequena caneca. Assim como Irises, ela também não era trocada. Malu enchia a pequenina de leite. Nando demorou alguns dias para perceber duas pequenas letras, com a inconfundível caligrafia de Malu: Jr.

Ele abriu um grande sorriso. Era o dia mais feliz de sua vida!


terça-feira, 10 de março de 2015

Fernanda e Ana: fogo e água.


Julinha e Timel, filha e sobrinha da minha querida amiga Kátia


Quando Paloma sentiu as dores do parto, já sabia que traria ao mundo duas meninas muito diferentes. Apesar da impossibilidade, astrologicamente falando, uma seria fogo e a outra água.

Fernanda nasceu primeiro, berrando, experimentando toda sua capacidade pulmonar. Era uma bebê grande e linda. Quando Paloma tomou-a nos braços, parou imediatamente de chorar, abriu seus olhos escuros e encarou a mãe.

Paloma conhecia aquele olhar. Era ousado e aventureiro. Apesar de serem de cores distintas, eram da mesma profundidade e irreverência que os de Fernando. Assustou-se num primeiro momento, pois não pensava nele a tempos. Mas valia a recordação de um sentimento tão intenso. Seria Fernanda, em sua homenagem.

Ana, por sua vez, era miúda e muito calma. Tinha os olhos cor de mel, doces e ternos. Muitos anos mais tarde, Paloma diria que, ao olhá-la pela primeira vez, os olhos eram verdes e que, em segundos, tornaram-se castanho claros. A impressão de tê-la em seus braços era a mesma de uma floresta ao alvorecer, orvalhada e fresca.

Segurá-las causava uma estranha sensação. Sentia num braço o calor de uma fogueira de São João e em outro, o arrepio das águas geladas de uma cachoeira.

Apesar de gêmeas, sempre foram muito diferentes e Paloma soube respeitá-las. Cresciam felizes. Quando estavam em idade escolar, Paloma teve alguma dificuldade. Foi depois de muito procurar que achou uma escola que atendesse as necessidades distintas das meninas.

O espaço era uma casa enorme, com atividades nas áreas interna e externa.

Ana passaria desapercebida num jardim em plena primavera. Qualquer um a confundiria com uma flor. Não uma rosa ou flor vistosa. Estava mais para uma pequena, delicada com perfume tão discreto e único que dificilmente desagradaria alguém.

Enfrentava o mundo com sua graça ingênua e risonha. Era uma criança quieta e observadora. Nunca exigia atenção, nem disputava espaço com Fernanda, uma verdadeira amazona. Ana cabia em seu espaço. Corria como um riacho tranquilo, sem pressa, tornando a vida de quem estava ao seu redor fresca e doce.

Dispersava-se com facilidade. Diagnosticariam os especialistas como depressiva ou com déficit de atenção. Aqueles mais atentos diriam: "Bobagem, Ana fala com os olhos!". Seus olhos refletiam o melhor de quem a observava. Estar ao lado dela era sentir a vida como uma avó sorridente, esperando você no portão, com um abraço apertado e quente, com cheiro de pão caseiro e bolo de cenoura com cobertura de chocolate.

Para encontrar Ana na escola, bastava procurá-la na cozinha ou no teatrinho de fantoche, dentro da casa.

Fernanda tinha um espírito livre. Voava com seus longos cabelos soltos. Era fácil encontrá-la. Bastava seguir seu riso contagiante. Estava sempre em grupo. Gostava de subir nas árvores para comer frutas ou estar mais perto de algum ninho de passarinho.

Era muito habilidosa na argila e na pintura com os dedos. Seus desenhos eram os mais coloridos e repletos de histórias para contar. Quase nunca estava onde deveria estar. Era ágil e só ficava um pouco mais quieta quando ouvia o som do berimbau e do violão, tocados num grande tanque de areia. Quando resolvia cantar, seus pés a acompanhavam numa dança cheia de piruetas.

As irmãs quase não se viam na escola. Pertenciam a mundos paralelos. Porém, todo final de tarde, depois de um dia de brincadeiras, elas se encontravam. Essa era a melhor lembrança que Paloma tinha da infância de suas gêmeas: elas davam as mãos e corriam para abraçar a mãe, cheias de saudades e novidades para contar.

quinta-feira, 5 de março de 2015

Linha 9, Esmeralda da MPB.





Meu primeiro texto é uma homenagem a quem me acalantou com sua voz tranquila e seu violão doce: meu pai.
Mapa do Transporte Metropolitano de São Paulo.



Estavam todos lá, no trem das onze. Esparramados pelo vagão que não estava tão cheio assim, afinal era tarde.

Marina, uma jovem morena com sua saia vermelho-sangue, estava no centro do vagão. Seu rosto estava carregado numa maquiagem pesada. Não tivera tempo de retirá-la após a última apresentação da noite. Certamente seria repreendida pelo marido que não gostava de ver o rosto da esposa pintado.

Ao lado de Marina, estava Madalena. Mada, como era chamada, estava novamente embriagada: wisky com guaraná. Entrou no trem dançando: dois pra lá... dois pra cá. Sentou-se perto da janela para observar a lua girar.

Wilson estava sentado em frente a Marina, admirando sua beleza. Era garçom. Tinha aquele cheiro típico de média e pão com manteiga à beça.

Num canto afastado, quase escondido, estava Paulo com seus fones de ouvido, aparentemente distraído. Era como um Pierrot apaixonado, cantarolando baixinho:"as rosas não falam... exalam o perfume que roubam de ti..."

Maria, ao lado de Paulo, procurava seu marido entre os homens do vagão. Voltava para casa abatida, desencantada da vida.

Camélia era viúva. Encontrou Joana, que estava apaixonada. Conversavam amenidades: "Olá, como vai?" "Eu vou indo e você, tudo bem?" "Quanto tempo..." "Pois é".

No outro extremo do vagão estava Jeca. José Carlos tinha saudades da sua terra. Viera para São Paulo em busca de um futuro melhor mas não esquecia seu passado. De que adiantava viver na cidade se a felicidade não o acompanhava? Tinha saudade do sabiá cantando no jequitibá. A estrada da vida era longa. Fechava os olhos cansados. As vistas iam escurecendo.

Na estação "Largo Treze", entrou João. Tipo valentão, brigão, daqueles que não prestam atenção e nem pensam na vida. Ficou em pé ao lado do malandro que ia para a Lapa. Era daqueles: regular, profissional, com gravata e capital. João olhou para ele e perguntou se sabia o resultado do futebol.

O Arnesto foi quem respondeu: "O Curintian perdeu o jogo". Ele estava arrasado perdera o jogo e o samba, marcado em sua casa. A chuva das últimas horas o impedira de sair do trabalho. Os amigos deviam estar furiosos com a falta de aviso. O celular de Arnesto, vejam só, ficou sem bateria!

E as estações chegavam. E as pessoas partiam.

No vagão restava apenas Carolina. Alheia, com seus olhos tristes. Estava grávida de Mônica e sozinha no mundo. O tempo passava na janela do trem e só Carolina não via.