domingo, 26 de abril de 2015

Olhos nos Olhos

Bethânia canta Chico


Almoçava com uma grande amiga, falávamos sobre relacionamentos, perspectivas e expectativas. Olhou para para o lado e disse: "Que visão mais triste..."

Observava um casal sentado em diagonal, em lados opostos, na maior distância possível em uma mesa retangular. Ele olhava para o alto, para uma TV sem som. Ela para baixo, para o celular. Ao lado da mulher tinha um bebê, num carrinho. Cada um olhava numa direção e seus olhos não se encontravam. Não olhavam nem para a comida. O garfo parado no ar, entre o prato e a boca. O molho mancharia a roupa, sem que notasse. Se perguntassem mais tarde: "O que comeram no almoço?", provavelmente não saberiam responder. Talvez o bebê, que era bem pequeno e ainda devia mamar no peito. Onde estava os Olhos nos Olhos?

Assisti duas vezes "O Sal da Terra" sobre a vida do fotógrafo Sebastião Salgado. Precisava sentir o que meus olhos viam: um retrato em branco e preto da vida e da humanidade! Um documentário que dá aquele grito de alerta: Olhos nos Olhos! Um ser humano obcecado pelo olhar: cego, vago, sofrido, amoroso risonho ou morto. Olhos dos que ainda lutam ou já desistiram e caminham sem rumo. E o grande final os olhos de "Genesis" da recriação da vida.

Infelizmente estamos perdendo os Olhos nos Olhos. Começamos e encerramos relações por uma tela fria. Andamos olhando para baixo, para nosso próprio umbigo, preocupados com emergências sem urgência.

"Olhos nos Olhos", do Chico Buarque, que dá o nome a esta pequena reflexão, fala sobre uma mulher humilhada que se refaz após um relacionamento doído e desfeito. Que diz ao antigo amor que ele verá "Olhos nos Olhos" a felicidade dela.

Por que é tão difícil, nos dias atuais, tanto olharmos nos olhos de quem é feliz quanto de quem sofre? Assim, não viveremos em breve a cegueira branca de Saramago?

Nos refazemos e nos alimentamos de afetos, afagos, beijos e abraços. Nos reconheceremos humanos, sem dúvida, quando conseguirmos nos olhar novamente: Olhos nos Olhos.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Eu gosto mesmo é de Gente.

"Gente"


Nos encontramos depois de muitos anos. Prá lá de 15. Não era um problema pois afetos e abraços são, para mim, atemporais. Falamos do ontem, da adolescência, das histórias que a muito tínhamos esquecido. Apesar do passado, celebrávamos o presente. Verdade! O encontro é uma arte ou a arte do encontro. Saí de lá pensando: "como gosto de Gente..." 

Sou psicóloga e muitas vezes fui questionada: "Como você aguenta ouvir o problema dos outros o dia todo?" Nós, psicólogos somos cheios de teorias e técnicas que respondem à questão. Mas acho que a resposta mais honesta e verdadeira é: "Eu gosto mesmo é de Gente". Com "G" maiúsculo, de substantivo próprio!

Foi no final da adolescência que escolhi minha profissão. Me dediquei a um trabalho comunitário onde convivia com crianças. E uma delas foi especial: era brava, batia nos meninos mas tinha o sorriso mais iluminado que me recordo. Descobriu um câncer e lutou muito. Minha última recordação dela foi num hospital. Estava muito frágil e só pude vê-la por uma janelinha. Quando me viu, abriu um sorriso e chorou. Faleceu alguns dias depois. Deixou para mim o amor a vida e a certeza que estava, profissionalmente, no caminho certo.

Gosto de falar com "Gente". Tenho "Gente" paciente, "Gente" família, "Gente" amiga, "Gente" amor. E tenho também "Gente" que vi apenas uma vez. Gosto da ideia de viver daquilo que vê no momento em que está.

Gosto de "Gente" como Jurema, que vi apenas uma vez num breve momento, no trajeto do ônibus percorrendo a Paulista. Ela entrou no ponto em frente ao Conjunto Nacional. Olhou, sentou-se ao meu lado e logo começou a conversar: "Era Jurema, como a marca da ervilha." Tinha, com certeza, mais de setenta. Voltava da casa da filha que adoecera gravemente. Cuidava com amor de mãe, incansável. Se dizia feliz, apesar do momento de sofrimento. Desci antes dela e me despedi com: "foi um imenso prazer te conhecer e desejo melhoras para sua filha..." E ela respondeu: "Obrigada pela conversa. Nunca se esqueça de mim: Jurema, como a ervilha." Nunca me esqueci da Jurema...

Termino essas linhas agradecendo ao Giba, a Lígia, a Paulinha, a Angélica e a tantos outros que são "Gente" em minha vida.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Você é feliz?





Manuzinha mirou a mãe e disparou:

- Mamãe, você é feliz?

Ela tinha só sete anos mas perguntava com a profundidade de uma adulto com anos de análise. Amanda parou o que estava fazendo e ficou em silêncio. Silêncio cego, surdo e mudo. Sua cabeça, que estava organizando o dia, ficou vazia. Era nesses momentos que Manu despertava uma raiva que Amanda não sabia existir dentro dela. Odiava a capacidade que sua filha tinha de ferir com sentenças tão simples. Por que eram tão diferentes?

- Você é, mamãe? É? - Manu não desistia.

A resposta que Amanda deu foi totalmente evasiva. Algo do tipo"deixe de bobagens e vá colocar seu uniforme".

Nunca conseguira responder a pergunta da filha. Não sabia o que era felicidade. Se ser uma boa profissional, boa mãe, esposa e cumprir todos os deveres era ser feliz, então ela era. Apesar do esforço para dizer que a equação estava correta, sabia que, no fundo, a resposta estava simplificada. Era apenas o prazer de preencher um espaço, como quem picha um muro branco.

Sua vida era regida pelo certo ou errado. Gostava do que era lógico, perfeito, limpo e coerente. Buscava alcançar seus objetivos.

A única equação sem solução era Manuela. Ela derrubava os cenários, contava o segredo das mágicas e colocava em xeque cada argumento da sua mãe com seus: "mas por quê?". Manu era sempre uma ameaça ao mundo perfeito que Amanda criara.

Amanda tinha grande habilidade para fugir das perguntas da sua filha. E quanto mais insatisfatórias eram as respostas, maior a distância entre elas.

Manu cresceu sem saber exatamente o que a mãe pensava e sentia. Amanda acreditava que dava o melhor de si para a filha, escondendo dela as imperfeições.

Elas não brigavam, nem se quer discutiam. Manu sofria com o distanciamento afetivo da mãe. Para Amanda tudo estava bem, ou melhoraria quando Manu se tornasse adulta. E quando isso aconteceu, Manu comunicou aos pais que iria morar sozinha.

Ao abrir a porta para o mundo, depois de esvaziar seu quarto, Manu respirou aliviada. Exatamente no mesmo momento, Amanda fechava a porta de seu quarto, chorando e ouvindo, num eco, a pergunta da menina Manu: "mamãe, você é feliz?".