O sobrado fora do bisavô, do avô e do pai de João. Era geminado e azul. Tinha "as marcas de um tempo esquecido", como dizia o avô. A grande satisfação de João era a praça em frente a casa. A janela com uma pequena sacada dava para aquele espaço de lembranças da infância.
O pai de João trabalhava muito, então, quando menino, ficava com o avô. No centro da praça, existia um banco de madeira. Seu avô Zezé construiu para que pudessem sentar e ficar horas contando seus "causos" para o pequeno João. O garoto se orgulhava de ter ajudado o avô na construção. Segurara as lixas, o martelo, os pregos. Escolhera o lugar onde o banco ficaria. O avô até deixou o menino pintar e passar o verniz.
O banco era firme, teimoso e resistiu ao tempo. Mas a vida da praça era um Ipê branco. Era o Ipê de Seu Zezé, sua alegria e orgulho. Dizia que era tradição de família aguardar a florada e fazer um pedido antes das flores pintarem o chão da praça de branco.
Seu Zezé ensinou João amar a natureza: escolher as plantas que resplandeciam ao sol, as tímidas que preferiam se esconder na sombra, as exibidas perfumadas. Tratava as doentes e matava a sede das que agonizavam.
João cresceu, estudou, trabalhou. No mesmo ano que se casou com Stella, perdeu o avô. Morava com ela no mesmo sobrado e depois da morte de Seu Zezé não conseguia abrir a janela do quarto. Caminhava com a cabeça baixa para não ver a praça.
Foi assim, triste, por quase um ano. Stella, já preocupada com a falta de brilho do marido, que sugeriu: "sua praça precisa de vida nova, de cor. Por que não experimenta uma nova planta? Acho que Seu Zezé iria sorrir de onde estivesse."
João passou então a cultivar orquídeas. Suspendeu-as nas árvores da praça. Floresciam narcisistas, ao bel-prazer. Escolhiam faceiras seu tempo de abrir. João era paciente. Atendia aos caprichos para vê-las sorrir. Ele voltou a brilhar.
Porém a vida de João não era fácil. Perdeu o emprego assim que a empresa fechou. Para viver, fazia pequenas atividades. Como ganhava pouco, saia muito cedo e voltava muito tarde. Quanto mais trabalhava, menos enxergava. Porque trabalhar demais cega o homem para a vida.
O pequeno sobrado ficou cinza. Stella se apagou. A praça diminuiu. João foi desaparecendo. Ele dormia, acordava e comia, quando se lembrava. Stella falava e ele não ouvia. Ela chorava e ele estava de costas.
Numa manhã ensolarada, acabou acordando atrasado, exausto que estava. O carro não funcionou e saiu de casa a pé. Atravessou a rua olhando para o chão que estava branco. Perdera a florada do Ipê. Ergueu os olhos e viu o banco. Foi até lá, enfrentando um caminho de pedras. Sentou-se e chorou. Lembrou-se de si. Lembrou-se de olhar. Lembrou-se de sentir. Ali, na praça descuidada, com mato alto viu a primeira orquídea que plantou. As flores estavam prestes a abrir.
Sorriu. Não perderia a próxima florada do Ipê de seu Zezé. Estariam os três no banco, cheios de pedidos: ele, Stella e o filho que iriam ter.
Lindo, a criatividade e a facilidade de juntar palavras, criando um texto único mexendo com a imaginação.
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