sábado, 28 de novembro de 2015

Por um instante

Presente da prima Gau



Tenho dois irmãos que amo muito mas sempre senti falta de ter uma irmã. Minha prima mais velha morou alguns meses em minha casa quando veio tentar a vida em São Paulo. Foi o mais perto que cheguei de ter uma irmã. Ela colava bilhetinhos, músicas, notas por todo o quarto. Foi ela que me presenteou com um texto chamado "Instantes". Não se sabe exatamente quem é o autor. É atribuído a Jorge Luis Borges. O importante, de verdade, é a beleza dele.

Ele volta a minha mente em alguns momentos da vida. Quando me pergunto por que ficar em casa arrumando a bagunça que fiz ao tirar tudo do meu guarda roupa, ao invés de assistir o novo documentário do Chico no cinema? Por que comprar presentes quando o que desejo de Natal é a presença das pessoas que mais amo? Por que ficar desesperada rolando na cama numa noite de insônia quando posso abrir a janela para ver a belíssima lua cheia?

Nessa semana ouvi uma história. Era sobre um homem que trabalhou muito, acumulou riqueza e quando se aposentou, resolveu levar a mulher numa viagem pelo mundo. Chegaram até Salvador, quando ela passou mal. Os médicos disseram que era grave e que eles precisavam voltar para São Paulo. Foi diagnosticada com câncer e faleceu. A viagem pelo mundo não ocorreu. Ela poderia ter acontecido em etapas, ao longo da vida deles. Não foi.

Escreveu assim, Daniel Munduruku, um escritor muito querido e admirado:

"Curta o momento, o presente, o agora. O passado é memória que não deve nos fazer sofrer e o futuro, todos sabemos, é um furo no tempo e que por isso deve ser vislumbrado nunca antecipado."

E a bagunça do guarda roupa e que agora ocupa minha cama? Ficará um pouco mais lá. Por um instante. Estou saindo para ir ao cinema assistir o Chico.


segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Mãos

Ma e Mari, modelos de mão!


Mãos que seguram firme a direção.
Mãos que falam.
Mãos que tocam a face antes do beijo.
Mãos que sinalizam o até... até amanhã.
Mãos que conhecemos e reconhecemos antes da imagem do rosto.
Mãos dadas para caminhar.
Mãos que ficam com o perfume dele depois de tocar sua nuca.
Mãos que acariciam o abraço.
Mãos dadas para adormecer.
Mãos que sentem o gelar da pele da coxa dela e a cobrem com um lençol.
Mãos que acendem a luz para ela não se perder na escuridão.
Mãos que deixam várias mensagens no celular.
Mãos que escrevem estas linhas e desenham estas letras.
Mãos que têm ótima memória e que não esquecem jamais...

domingo, 30 de agosto de 2015

Sra. Razão... Srta. Emoção...




A Emoção descansava na rede esperando o pôr do sol, olhando as ondas batendo na areia da praia, cantarolando "O que Será" versão "à flor da pele".

A Razão chegou silenciosa, com seus passos calculados, cronometrados e precisos. Sentou-se ao lado da Emoção. Ao invés da espreguiçadeira, preferiu uma cadeira. Estava ereta e olhava na mesma direção da Emoção, procurando o que ela via que tanto a sensibilizava.

Quem iniciou o diálogo foi a Emoção:

- Como tens passado, Sra. Razão?

- A refletir...

- Sobre?

Silêncio. A Razão fazia um esforço enorme naquele momento. A Emoção falava solta. Pensou dez vezes antes de responder e falou com certa dificuldade:

- Penso sobre a prisão que se encontra minhas palavras sentidas... elas vivem só no pensamento... - falou pausadamente.

- Sei como se sente. Sou pelo oposto... Elas não cabem em meu pensamento. Escorrem, se esparramam. Elas transparecem em meu rosto. Todos notam.

Outro longo silêncio... rompido novamente pela Emoção:

- Nunca sei o que estás a pensar. Algumas poucas vezes percebo respostas pelo seu corpo. Como agora, que sentas um pouco mais relaxada...

- Desculpe, é esse meu ser racional. Você já deve ter percebido as dificuldades que isso gera...

- Sim. Isso a mantém travada, sem gracejos ou rebolado.

- E você a dançar. Tão leve e contente. Sempre a sorrir. Vive numa dança sem passos marcados. Você me deixa a pensar...

-Que bom! De alguma forma, tanta lógica também me encanta. Vivo a tentar me controlar, organizar pensamentos e ações. Tenho muito a aprender contigo.

Outro longo silêncio e experimentando uma nova estratégia, quem falou primeiro foi a Razão:

- Mas a verdade é que quero sentir um pouco do que você tem... - outro silêncio - E você, Senhorita Emoção? O que procuras?

- Aquilo que ainda não conheço. Gosto de novidades. Talvez um pouco da paz que sua organização lhe proporciona. Sentir muito, às vezes, me cansa.

- Não ter liberta as palavras também me cansa. O refletir e refletir me esgota...

- Já pensastes em outra solução? Transforme pensamentos em gestos. Algumas coisas podem ser ditas sem palavras. Não todas... mas algumas podem.

Então a Razão olhou firme para a Emoção e num gesto delicado segurou-lhe a mão. Experimentou um sorriso tímido. Respondeu a Emoção com lágrimas nos olhos. Durou o tempo do sol se despedir e a noite encobrir seus rostos.

Levantaram-se e ainda de mãos dadas caminharam em direção ao mar. Mergulharam aguardando a lua cheia refletir seu brilho sobre elas.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Bom Dia!

"Quanto mais forte for seu desejo de felicidade, mais infeliz serás. A felicidade não é uma coisa que se conquiste. Hão de dizer-te que sim. Não acredites. A felicidade é ou não é." José Saramago em CLARABOIA


Segundo um grande amigo sou "ensolarada". Gosto do dia! E para que ele comece bem irradio "BOM DIA" pelo trajeto até o trabalho. É uma pequena caminhada mas aceno e desejo um "Bom Dia" para o taxista do outro lado da rua, para o frentista que começou o dia ainda no escuro. Para o senhor que carrega um saco enorme com pão fresco. Um sorriso "Bom Dia" para o chapeiro que todos os dias me pergunta como estou, faz meu pãozinho e minha média bem quente.

"Bom Dia" para quem trabalha comigo, que costumo chamar de "florzinha" e dou um beijo carinhoso no rosto.

"Bom Dia" para o paciente que chega atrasado e estressado. Ele acaba demorando outro tanto para iniciar os assuntos importantes da sessão porque não disse: "Bom Dia"!

Quando tenho um tempo gosto de usar a rede social para dar "Bom Dia". Busco sempre algo que diga a todos que conheço que o dia começou e estamos diante de novas decisões. É o momento de viver o presente, de perceber o dia e pensar o que faremos com ele.

O "Bom Dia" é olhar para frente, para os lados. É perceber as pessoas no olhar e saber que não estamos sozinhos no mundo.

Então: BOM DIA para todos vocês!

sábado, 8 de agosto de 2015

Vita Brevis


Praia particular - Alagoas



As vezes Neto sentia que sua vida sofria do mal da disritmia. Era como um passo de dança que nunca acertava. Quando isso acontecia, procurava a estrada. As coisas que carregava em excesso iam se perdendo nas curvas do caminho. Gostava particularmente daquelas que serpenteavam para desembocar no mar. Precisava do sal marinho para ressaltar o sabor da vida.

Gostava de velejar e cumpria o ritual todos os anos. Assim exorcizava-se do negrume de seu trabalho: Neto era engenheiro químico de um indústria petrolífera. Realizara o sonho de seu avô. Figura imponente e o mais próximo que conhecera de um pai. Perdera o seu muito novo, tinha apenas três anos. O pai era uma lembrança olfativa, um cheiro de loção pós barba.

Velejar era seu descompromisso. A permissão para não fazer nada. Gostava de ter a ideia que trinta dias seriam contados pelo pôr do sol. Velejava só, com a visão infinita do mar. Era o espelho que refletia mais um ano vivido.

Foi num final de tarde, após alguns dias de viagem, que resolveu mergulhar. Estava muito quente e o mar estava manso, dormia a sono solto, feito bebê exausto. Sabia que tinha algum tempo antes do sol se pôr. Sentia a falta de uma mulher que não tinha rosto, nem corpo. Apenas um odor cítrico. Ela era assim: uma nota rara, única.

Ao olhar para o horizonte, viu um raio verde que brilhava no exato momento que o sol dava seu último suspiro antes de adormecer. Talvez passasse a vida toda para ter a oportunidade de ver tal fenômeno. E ele acontecera em sincronia perfeita com a lembrança do perfume mais delicioso que provara em sua vida.

E foi num piscar de olhos ou entre uma inspiração profunda e outra que retornou para sua ilha. Lá era um grande alquimista que perfumava as almas.

A terra era úmida. Era uma ilha de flores coloridas e tantos eram os odores que tinha a impressão que as cores exalavam cheiros. Entre todas elas, procurou aquela que era a parte essencial de seu melhor perfume: o da moça sem rosto. A flor era pequena, de um azul intenso e profundo, quase violeta. Deitou-se para inspirá-la profundamente. Ao senti-la invadir e devastar seus pulmões, percebeu o calor percorrer o corpo e arrepiar a pele. Seu corpo pulsava e sentia espasmos. Após alguns segundos a melhor sensação: um relaxamento e uma felicidade intensa. Não estava drogado. Tinha o que mais desejava em sua breve vida: inspirar de tanto prazer.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Lendo Vinícius, apreciando Miró.

Miró fazendo arte na praia.

Ando flertando Vinícius. Quero ouvir suas músicas, ler seus poemas e conhecer sua vida. Sei pouco a seu respeito, bem pouco. Do que li ou assisti me chamou a atenção o apego que tinha por seus amigos numa relação que beirava a dependência.


"Tenho amigos que não sabem o quanto são meus amigos.
Não percebem o amor que lhes devoto
e a absoluta necessidade que tenho deles"
Amigos - Vinicius de Moraes


Aliás, do pouco que sei, era viciado em amor. Ouvi um depoimento do Chico que dizia que quando Vinícius amava uma mulher, tinha que casar com ela. Viveu intensamente a vida até ser consumido por ela.

Fui recentemente ver a exposição de Miró. Sem vergonha em admitir que conhecia ainda menos a respeito desse grande artista. Às vezes a ignorância é uma dádiva pois temos a oportunidade de encarar o desconhecido com o olhar de encantamento da criança que descobre as belezas do mundo de forma ingênua e pura. Foi uma experiência incrível! Ver o belo pelo belo, sem me preocupar com concepções.

Miró fez arte na praia, no ferro esculpido, na madeira, no tecido ou no papelão, pintando no chão, todo curvado. Completamente desapegado de normas; criando não importa onde ou como.

Artistas tão distintos, com seus apegos ou desapegos. Porém de uma coisa tenho certeza: tinham um caso de amor com a vida. Trabalharam com paixão até o último suspiro.

Quando crescer, quero ser um pouco, só um pouquinho, como eles.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Do que sinto falta...

Flor do Jardim Botânico em Curitiba



Da flor que só abre na primavera.
De dançar mesmo quando os pés não acompanham minha energia.
Da jabuticaba que ainda não frutificou.
De rir sem parar até faltar o ar.
Do sol num dia frio de inverno.
Do amigo que não encontro.
Do sorriso aberto que se foi e retenho na lembrança.
Do cheiro de comida de vó.
Dos pés descalços na areia da praia.
Da resposta que nunca chegou.
De uma longa viagem.
Das gracinhas da pequena sobrinha.
Do filme que não acho em lugar nenhum.
Da história lida que chegou ao fim.
Do último pedaço do doce preferido.
Do cheiro da chuva.
Do som da MPB ao violão.
Do abraço carinhoso. 
Do coração acelerado.

Das pequenas coisas, das lembranças que sempre me fazem sorrir.









domingo, 28 de junho de 2015

"Flor da Madrugada"



A porta bateu. Manu me olhou, chegou mais perto e me deu um beijo carinhoso. De todas as minhas netas, era a mais parecida comigo.

Minhas filhas ficavam intrigadas: "Como essas meninas podem ser tão apegadas à você, mãe?" Elas não compreendiam. Nunca fui uma avó do tipo "boa velhinha".

Manu estava esperando. Gostava de ficar a sós comigo. Gostava, mais do que as outras, de ouvir minhas histórias. Dizia que iria se tornar escritora para poder contá-las. Queria saber de todas as viagens, das aventuras, das gargalhadas. Sempre na companhia de seu avô. Queria saber das coisas cotidianas, que tornavam minha vida toda especial.

Tínhamos nossos segredos. O mais precioso deles era uma história. Sempre que nos encontrávamos assim, ela pedia: "Vovó, conta a história da Flor da Madrugada!?"

Apesar dos tempos mudados, ela era uma adolescente cheia de sonhos. Aos 16 anos, com o corpo perfeito, era exatamente a imagem do que eu era nessa idade.

Ela preparava o ambiente, colocava uma música do Chico, sentava-se nos almofadões no chão, segurava minha mão e pedia: "Flor da Madrugada, vovó."

Flor da Madrugada

"Ele foi embora com um: 'Se cuide'. Abri a janela para um último adeus. Seguiu seu caminho, correndo, sem olhar para trás. A chuva molhava meu rosto e o vento de tempestade embaralhava meus cabelos. Um verdadeiro alívio para aquela madrugada de verão.

O vento assobiava alguma canção conhecida. Para ouvi-la de perto, resolvi ir ao jardim. "Na Boca da Noite", sem dúvida! Irresistível! Embalada: eu dançava na chuva... sorria e dançava.

Rodava e lembrava do tempo em que ele era apenas um menino bonito. Das cenas de ciúme, do acelerar do coração a cada toque do telefone. Da sua voz marcante de tenor. Do seu ser grandioso, sem ser majestade.

Veio a vertigem e ao deitar exausta na grama, dei-me conta que passaram-se anos.

A chuva já caia suave e silenciosa. Ia lavando seu cheiro que marcava cada parte do meu corpo, até ele misturar-se ao gosto da terra. Dormi encharcada.

Sonhei com seus abraços e seus beijos. Ao amanhecer, meu corpo ainda respondia aos prazeres da madrugada.

Na noite seguinte despertei com um perfume intenso. Noite estrelada, com luar pálido que iluminava o jardim. Nem sinal da tempestade. Fechei os olhos e deixei o odor me guiar. No exato lugar daquela dança sensual da madrugada anterior, havia uma flor. Graúda e vermelha. Passei horas admirando e sentindo seu perfume inebriante. Assim adormeci.

O sol aqueceu meu rosto e acordei sem sobressaltos: mais um dia de trabalho. Ao sair de casa, não resisti e fui procurar a flor no jardim. Ela sumira mas seu perfume, único e sexual, vestiu meu corpo durante dias. Naquela manhã resolvi mudar minha vida.

Todos os dias olho para o jardim. Escuto, num sussurro, sempre a mesma pergunta, que me acompanha onde quer que esteja."

Então, como num ritual, Manu me perguntava: "Quem é ele? Ele voltou? Qual a pergunta que você ouvia?" E que eu respondia sempre da mesma maneira: "Um dia, Manu, te conto essa história..."

Neste momento o telefone tocou e Manu saiu correndo.

Olhei pela janela para ver o sol se por. Via nitidamente seu rosto. Onde estaria? Seria feliz? Nos perdemos no passado. Num passado muito, muito distante.

sábado, 20 de junho de 2015

Por quê?

Ilustração: Marcella, 10 anos

Para quem você mente? Que seria de nossa vida se não corrêssemos riscos desnecessários? Muitas vezes, o que achamos desnecessário é justamente aquilo que mais nos falta e negamos por pura covardia, não é?

Por que precisamos medir nossas vidas por erros e acertos? Esse sistema não nos limita por que enquadra? Por que na vida tudo precisa ter foco? Por que gostamos mais das certezas do que das dúvidas?

Por que quase sempre caminha sozinho? Onde guardou os olhos que brilhavam para a vida? Por que deixou a poesia trancada na gaveta? Por que escolheu viver em teses? Por que deixou a paixão pela lua e hoje só olha para o chão? O que te encanta? Que canção não sai da cabeça? Ou só ouve notícias?

Por que não cheira as flores ou os amores? Por que não ri das piadas? Por que alimenta ausências? Por que as retas e não as curvas? Por que de tanto no concreto? Por que razão?

Por que não de tanto viver? 

Por que não?

Por quê?

terça-feira, 9 de junho de 2015

Réstia de luz




Não conseguia enxergar nada. Tinha desistido de nadar e só boiava. Boiava com a esperança que as nuvens dançassem aos pares para poder vislumbrar as estrelas, mesmo sabendo que ao olhá-las provavelmente muitas delas já não existiriam. Mas deixariam um rastro de luz.

Queria uma fonte luminosa, mesmo que fosse apenas um ponto. Porque um ponto é o início de um traço e um traço indício de um caminho.

Fechou os olhos. Quem sabe ainda tinha retida na lembrança alguma imagem de um pouco de calor. O frio que sentia não era normal. Paralisava ao mesmo tempo que fazia tremer. Se tremia, então estava vivo. Se vivo, conseguia ver. Se via, podia deslumbrar-se. Valia a pena enfrentar o pânico de abrir os olhos.

Continuava escuro. Nada mudara no céu. De repente sentiu algo: cócegas nos pés. E aquela corrente gostosa de coceira foi subindo por suas pernas. Queria se mexer, sentir seu corpo vivo. Então podia se movimentar e resolveu mergulhar profundamente numa água com temperatura bem agradável. Foi até um mundo submerso cheio de formas e cores. Nadou entre seres imaginários e cenários deslumbrantes. Quando faltou oxigênio, sabia que precisar voltar a superfície.

Encheu o pulmão de ar e quando estava se preparando para mergulhar novamente, notou que algo estava diferente. Sentia atrás de si uma luz que formava uma sombra. Virou-se mas nada encontrou. De onde vinha a luz? De suas costas. Uma lua brotava em suas costas. 

Pela primeira vez em muito tempo desenhou um sorriso. Porque se existia luz, existia sol. Era uma questão de tempo. Era esperar o despertar do dia. Um sol nasceria em seu peito.

domingo, 7 de junho de 2015

70 anos de Mamãe.




Hoje ela completa 70 anos. Sempre foi, para mim, um exemplo de mulher: trabalhou muito, cuidou de três filhos, de um casamento e sobrou como Gente! É admirada e querida onde passa. Impressionante: quem a conheceu jamais a esquece!

De riso fácil e doce. De fala mansa. Mas alerta e ativa. Eu e meus irmãos brincávamos: "Ela era como a formiga atômica!" Não era ela quem nos levava ao parque ou ao cinema. Essa era a tarefa de meu pai. Ela era responsável pelo suco de vinho, pelo doce de goiaba e por assinar os boletins.

Diziam meus irmãos: a chinelada dela não doía. E riam-se.

Durante minha adolescência permaneceu discreta. Aliás, como sempre foi. Nunca interferiu em minhas escolhas mas estava sempre perto quando meus caminhos foram tortuosos. Ela se aconchegava e sempre dizia palavras ternas e cheias de esperança.

Hoje leva uma vida tranquila, numa cidade de interior. Voltou às origens. Acalmou. Curte as plantas e deu para fazer cachecol e panos de prato. Aos 70 anos não tem vaidades, gosta dos cabelos brancos e sua maior alegria é rir das gracinhas da neta. Com ela brinca de roda e faz batuque com as panelas.

Escrevo ao som de uma das passagens preferidas:" O Coro dos Escravos" de Giuseppe Verdi. Me apossei de seu CD que um dia me mostrou e disse: "Essa filha, é uma das passagens que mais gosto  e que mais me comove." Furtei para nunca esquecer.



Obrigada, mãe! Sou mais profissional, mais mulher, mais Gente porque aprendi com você! Ensinamentos para a vida toda, de mãe para filha.

terça-feira, 26 de maio de 2015

E direito por acaso tem dono?

Guerra e Paz, Portinari

Entrou no consultório e deixou o "Bom dia" em casa, entre os papéis esquecidos na gaveta. "Tenho uma consulta agora." A secretária olhou a agenda. "Desculpe porém a consulta não é hoje". Foi como uma fagulha na pólvora. "Mas está marcado na minha agenda. Vocês marcaram errado! Porque eu... Eu não erro nunca!" Depois foi um rol de coisas impublicáveis terminando com: "Eu tenho os MEUS direitos..." E saiu batendo o pé e a porta.

Estava numa loja dessas que vendem de tudo. Dez horas da manhã de uma segunda feira. Quase ninguém na fila e poucos caixas abertos. Uma senhora segurava dois pacotes de balas. Aguardava ser atendida, já bem próxima do caixa. Uma jovem mãe, seu bebê e a avó apareceram com um carrinho cheio. "Me deixem passar porque sou preferencial." E passou na frente da senhora, colocando as compras no caixa. A senhora das balas ficou indignada: "Você não vai passar na minha frente!" A jovem mãe respondeu: " Meu bebê está chorando e eu tenho MEUS direitos. Sou preferencial!" Então começou a discussão que no final estava assim: "Você quer brigar? Vou lá fora chamar meu marido!" E a moça só se calou após sua mãe gritar umas duas ou três vezes. O bebê, no colo da avó, estava quieto só observando.

Foi numa travessa de uma grande avenida que fui surpreendida com uma daquelas cenas onde a buzina funciona como grito de mulher quando vê barata. E como a buzina gritava: estridente e numa constância assustadora! O sinal estava fechado. O barulho não foi suficiente: a dona do carro (desses importados, caros) desceu. Era pequena, mesmo no seu scarpin altíssimo. Vestia um belo tailleur. Foi até o carro imediatamente a sua frente, colocou o dedo no vidro e xingou, esbravejou e falou no tal dos "MEUS direitos". Estava tão alterada que não percebeu que o farol abrira. Levava uma salva de buzinas dos carros que estavam atrás do dela.

E direito por acaso tem dono? Não! Direito não tem dono! Ele não é MEU ou SEU. Ele serve a todos e vivia acompanhado do "bom senso", há muito esquecido pelas pessoas nos dias de hoje. Infelizmente.


domingo, 10 de maio de 2015

O país dos homens scontrosi

Um brinde!


"Neste país, os homens eram todos rabugentos. Nada estava bom para eles. A comida era salgada demais ou não tinha tempero algum. A roupa estava mal passada e sempre tinha manchas. As mulheres falavam demais. Acordavam e reclamavam da escuridão e quando viam o sol, estavam muito atrasados. O trânsito era insuportável e reclamavam do barulho estridente das buzinas dos outros carros. Dirigidos por outros homens. E para protestar, buzinavam também.

No trabalho olhavam feio para cada "bom dia" que recebiam. E quando não recebiam, reclamavam do mau humor alheio. Esqueciam de almoçar e a rabugice alcançava níveis alarmantes!

Quando chegavam em casa, desejavam que suas mulheres não estivessem lá. Assim poderiam tomar banho em paz, sem o habitual rol de como-foi-o-dia-dela-com-todas-as-cores-e-detalhes-em-alta-definição. E se elas não estivessem, reclamariam a falta delas e o excesso de gastos com futilidades como unhas, lojas e compras do mês.

Então elas resolveram se reunir. Não para reclamar, porque estavam cansadas de tantas reclamações mas para rir. Riam daquilo que não compreendiam. Riam do que estava certo e errado. E falavam sem parar, emendando a fala da outra, tecendo uma colcha de retalhos de assuntos sem fim.

E comiam sem culpa, nem desculpa. Brindavam o encontro onde podiam falar sobre tudo, sem olhares de censura. Quando paravam de falar, conversavam em silêncio, se compreendiam e se apoiavam.

Depois de tanta embriaguez de sentimentos, voltavam para seus maridos. Ouviam suas lamúrias. Elas não sentiam o impacto, protegidas umas pelas outras."



É claro que este país não existe! É claro que todos nós, mulheres e homens, temos nossas rabugices. Não se trata de uma característica dos sexos e sim de como encaramos a vida! É hora de brindar "somos humanos" e repensarmos como queremos nos relacionar...

domingo, 26 de abril de 2015

Olhos nos Olhos

Bethânia canta Chico


Almoçava com uma grande amiga, falávamos sobre relacionamentos, perspectivas e expectativas. Olhou para para o lado e disse: "Que visão mais triste..."

Observava um casal sentado em diagonal, em lados opostos, na maior distância possível em uma mesa retangular. Ele olhava para o alto, para uma TV sem som. Ela para baixo, para o celular. Ao lado da mulher tinha um bebê, num carrinho. Cada um olhava numa direção e seus olhos não se encontravam. Não olhavam nem para a comida. O garfo parado no ar, entre o prato e a boca. O molho mancharia a roupa, sem que notasse. Se perguntassem mais tarde: "O que comeram no almoço?", provavelmente não saberiam responder. Talvez o bebê, que era bem pequeno e ainda devia mamar no peito. Onde estava os Olhos nos Olhos?

Assisti duas vezes "O Sal da Terra" sobre a vida do fotógrafo Sebastião Salgado. Precisava sentir o que meus olhos viam: um retrato em branco e preto da vida e da humanidade! Um documentário que dá aquele grito de alerta: Olhos nos Olhos! Um ser humano obcecado pelo olhar: cego, vago, sofrido, amoroso risonho ou morto. Olhos dos que ainda lutam ou já desistiram e caminham sem rumo. E o grande final os olhos de "Genesis" da recriação da vida.

Infelizmente estamos perdendo os Olhos nos Olhos. Começamos e encerramos relações por uma tela fria. Andamos olhando para baixo, para nosso próprio umbigo, preocupados com emergências sem urgência.

"Olhos nos Olhos", do Chico Buarque, que dá o nome a esta pequena reflexão, fala sobre uma mulher humilhada que se refaz após um relacionamento doído e desfeito. Que diz ao antigo amor que ele verá "Olhos nos Olhos" a felicidade dela.

Por que é tão difícil, nos dias atuais, tanto olharmos nos olhos de quem é feliz quanto de quem sofre? Assim, não viveremos em breve a cegueira branca de Saramago?

Nos refazemos e nos alimentamos de afetos, afagos, beijos e abraços. Nos reconheceremos humanos, sem dúvida, quando conseguirmos nos olhar novamente: Olhos nos Olhos.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Eu gosto mesmo é de Gente.

"Gente"


Nos encontramos depois de muitos anos. Prá lá de 15. Não era um problema pois afetos e abraços são, para mim, atemporais. Falamos do ontem, da adolescência, das histórias que a muito tínhamos esquecido. Apesar do passado, celebrávamos o presente. Verdade! O encontro é uma arte ou a arte do encontro. Saí de lá pensando: "como gosto de Gente..." 

Sou psicóloga e muitas vezes fui questionada: "Como você aguenta ouvir o problema dos outros o dia todo?" Nós, psicólogos somos cheios de teorias e técnicas que respondem à questão. Mas acho que a resposta mais honesta e verdadeira é: "Eu gosto mesmo é de Gente". Com "G" maiúsculo, de substantivo próprio!

Foi no final da adolescência que escolhi minha profissão. Me dediquei a um trabalho comunitário onde convivia com crianças. E uma delas foi especial: era brava, batia nos meninos mas tinha o sorriso mais iluminado que me recordo. Descobriu um câncer e lutou muito. Minha última recordação dela foi num hospital. Estava muito frágil e só pude vê-la por uma janelinha. Quando me viu, abriu um sorriso e chorou. Faleceu alguns dias depois. Deixou para mim o amor a vida e a certeza que estava, profissionalmente, no caminho certo.

Gosto de falar com "Gente". Tenho "Gente" paciente, "Gente" família, "Gente" amiga, "Gente" amor. E tenho também "Gente" que vi apenas uma vez. Gosto da ideia de viver daquilo que vê no momento em que está.

Gosto de "Gente" como Jurema, que vi apenas uma vez num breve momento, no trajeto do ônibus percorrendo a Paulista. Ela entrou no ponto em frente ao Conjunto Nacional. Olhou, sentou-se ao meu lado e logo começou a conversar: "Era Jurema, como a marca da ervilha." Tinha, com certeza, mais de setenta. Voltava da casa da filha que adoecera gravemente. Cuidava com amor de mãe, incansável. Se dizia feliz, apesar do momento de sofrimento. Desci antes dela e me despedi com: "foi um imenso prazer te conhecer e desejo melhoras para sua filha..." E ela respondeu: "Obrigada pela conversa. Nunca se esqueça de mim: Jurema, como a ervilha." Nunca me esqueci da Jurema...

Termino essas linhas agradecendo ao Giba, a Lígia, a Paulinha, a Angélica e a tantos outros que são "Gente" em minha vida.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Você é feliz?





Manuzinha mirou a mãe e disparou:

- Mamãe, você é feliz?

Ela tinha só sete anos mas perguntava com a profundidade de uma adulto com anos de análise. Amanda parou o que estava fazendo e ficou em silêncio. Silêncio cego, surdo e mudo. Sua cabeça, que estava organizando o dia, ficou vazia. Era nesses momentos que Manu despertava uma raiva que Amanda não sabia existir dentro dela. Odiava a capacidade que sua filha tinha de ferir com sentenças tão simples. Por que eram tão diferentes?

- Você é, mamãe? É? - Manu não desistia.

A resposta que Amanda deu foi totalmente evasiva. Algo do tipo"deixe de bobagens e vá colocar seu uniforme".

Nunca conseguira responder a pergunta da filha. Não sabia o que era felicidade. Se ser uma boa profissional, boa mãe, esposa e cumprir todos os deveres era ser feliz, então ela era. Apesar do esforço para dizer que a equação estava correta, sabia que, no fundo, a resposta estava simplificada. Era apenas o prazer de preencher um espaço, como quem picha um muro branco.

Sua vida era regida pelo certo ou errado. Gostava do que era lógico, perfeito, limpo e coerente. Buscava alcançar seus objetivos.

A única equação sem solução era Manuela. Ela derrubava os cenários, contava o segredo das mágicas e colocava em xeque cada argumento da sua mãe com seus: "mas por quê?". Manu era sempre uma ameaça ao mundo perfeito que Amanda criara.

Amanda tinha grande habilidade para fugir das perguntas da sua filha. E quanto mais insatisfatórias eram as respostas, maior a distância entre elas.

Manu cresceu sem saber exatamente o que a mãe pensava e sentia. Amanda acreditava que dava o melhor de si para a filha, escondendo dela as imperfeições.

Elas não brigavam, nem se quer discutiam. Manu sofria com o distanciamento afetivo da mãe. Para Amanda tudo estava bem, ou melhoraria quando Manu se tornasse adulta. E quando isso aconteceu, Manu comunicou aos pais que iria morar sozinha.

Ao abrir a porta para o mundo, depois de esvaziar seu quarto, Manu respirou aliviada. Exatamente no mesmo momento, Amanda fechava a porta de seu quarto, chorando e ouvindo, num eco, a pergunta da menina Manu: "mamãe, você é feliz?". 

quinta-feira, 26 de março de 2015

Caros amantes


Chico, Chico e mais Chico...



 Ela escolheu a trilha sonora toda do Chico Buarque. Era de sabor marcante, Quando ele chega, na hora marcada, corrida, já não há mais tempo para romance. Os amantes se encontram. Está tocando "Sem Fantasia".

- Não quero falar nada! Não me pergunte nada! - diz o amante.

Ela está tão perto. Tão perto que não existe espaço para nenhuma palavra.

A urgência do toque, dos beijos ardentes, indecentes e por fim o calor de dois corpos que falam melhor deitados, perdidos, entrelaçados e pedintes. Pedem pelo tempo que nunca existiu. Pelo amor que não brotou. Pela vida que não levaram juntos.

Porque o prazer só fala bem a língua do corpo.

- Eu te desejo! - fala o corpo dele.

- Não vou a lugar nenhum! - ouve a resposta do corpo dela.

"Tatuagem", "O Meu Amor"... "O que será?"... É o auge! Na troca de olhares, no suspiro dos últimos gemidos, antes da plenitude, que só quem se entrega de verdade pode sentir.

Nos braços e nas pernas, porque já não sabem qual é de quem, escutam "Todo Sentimento". Ela olha para ele. Ele fecha os olhos e respira fundo.

- O que você está pensando?

Enquanto, morrendo de medo, ela espera o início da música "Eu te Amo". Espera. Espera.

"Na Carreira", dão risada lembrando os tempos passados. Ela aguarda. Aguarda.

E ele se cala. Pensa o que não precisa falar. Porque não há "Pedaço de Mim" na trilha sonora, ele tem certeza!

E ela anseia, anseia.

Ele, exausto, dorme. Ela senta na beira da cama, com a cabeça baixa. Estão nus. A voz do Chico entra em seus ouvidos. A última canção: "Futuros Amantes". Nos últimos versos:

"Não se afobe não
Que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá 
Se amarão sem saber
Com o amor que um dia
Deixei pra você"

Um única lágrima, envergonhada, tímida mas teimosa, insiste, salgada, em molhar o doce rosto da moça.

Os primeiros raios de sol entram pela janela.

Ele dorme o sono dos justos e cansados.


terça-feira, 17 de março de 2015

"Irises", a caneca.

"Irises", a caneca. Presente de minha amiga Renata.



Casaram-se mas sem a Igreja. Também não fizeram festa. Foram direto para a lua de mel, na Holanda. Foi lá que Nando deu a vigésima sétima caneca da coleção de Malu: a reprodução cilíndrica de "Irises" de Vicent van Gogh.

Porém Malu não as expunha em armários com vidro e chaveadas. Todo domingo trocava dez ou quinze delas e colocava no armário da cozinha, ao lado da cafeteira.

No início Nando achava aquele comportamento totalmente sem sentido. Como era possível sua esposa, tão prática e racional, ter um hábito tão estranho? Malu era bem resolvida e dificilmente falava sobre sentimentos. Poupava-os de muitas brigas. Vivia muito bem, obrigada.

O tempo foi virando suas páginas e Fernando foi ficando incomodado pois elas se moviam antes dele ler os últimos parágrafos. O sentimento que antes era sólido, invariável, passou a ser uma incômoda incógnita.

Ele não sabia o que Maria Luisa sentia. Quando tentavam conversar sobre sentimentos era assim: ele em grego e ela em egípcio antigo. Parecia não existir tradutor.

Foi numa manhã de domingo que Nando encontrou sua pedra roseta. Malu estava de ressaca, com uma enxaqueca terrível. Ao fazer a troca das canecas, derrubou uma vermelho-sangue que se espatifou no chão. Ela ficou furiosa e Nando curioso. Nunca a vira tão descontrolada.

Então criou uma tese maluca em que o humor da sua esposa era medido pela escolha da caneca que ela fazia pela manhã. Aprimorou sua tese colocando mais uma variável: a bebida que ela colocava na caneca. Assim:

caneca Irises + chá de hortelã = dia fresco, agradável e cheio de carinho;

caneca vermelha (ela comprou outra) + café extra forte = não chegue muito perto pois vai sobrar para você!

Nando sempre acordava antes de Malu. Gostava de vê-la preparando sua bebida matinal : a previsão do humor. Sabia, por exemplo, o quanto ela era feliz com ele: a caneca Irises nunca era trocada. Estava sempre lá e era muito utilizada. Ok, as vezes com chá de carqueja ou de boldo mas na maioria das manhãs, com uma bebida suave, doce e quente.

Nunca falou com Malu a respeito de sua teoria das canecas. Não sabia como ela iria reagir: com risos ou desdém. Como funcionava bem para ele, nada disse.

Nando era muito organizado e começou a separar as canecas por cor, forma e tamanho. Malu trocava as canecas nas manhãs de domingo e Nando as arrumava antes de dormir.

Foi no final de abril, depois de cinco anos de casados, que reparou em uma pequena caneca. Assim como Irises, ela também não era trocada. Malu enchia a pequenina de leite. Nando demorou alguns dias para perceber duas pequenas letras, com a inconfundível caligrafia de Malu: Jr.

Ele abriu um grande sorriso. Era o dia mais feliz de sua vida!


terça-feira, 10 de março de 2015

Fernanda e Ana: fogo e água.


Julinha e Timel, filha e sobrinha da minha querida amiga Kátia


Quando Paloma sentiu as dores do parto, já sabia que traria ao mundo duas meninas muito diferentes. Apesar da impossibilidade, astrologicamente falando, uma seria fogo e a outra água.

Fernanda nasceu primeiro, berrando, experimentando toda sua capacidade pulmonar. Era uma bebê grande e linda. Quando Paloma tomou-a nos braços, parou imediatamente de chorar, abriu seus olhos escuros e encarou a mãe.

Paloma conhecia aquele olhar. Era ousado e aventureiro. Apesar de serem de cores distintas, eram da mesma profundidade e irreverência que os de Fernando. Assustou-se num primeiro momento, pois não pensava nele a tempos. Mas valia a recordação de um sentimento tão intenso. Seria Fernanda, em sua homenagem.

Ana, por sua vez, era miúda e muito calma. Tinha os olhos cor de mel, doces e ternos. Muitos anos mais tarde, Paloma diria que, ao olhá-la pela primeira vez, os olhos eram verdes e que, em segundos, tornaram-se castanho claros. A impressão de tê-la em seus braços era a mesma de uma floresta ao alvorecer, orvalhada e fresca.

Segurá-las causava uma estranha sensação. Sentia num braço o calor de uma fogueira de São João e em outro, o arrepio das águas geladas de uma cachoeira.

Apesar de gêmeas, sempre foram muito diferentes e Paloma soube respeitá-las. Cresciam felizes. Quando estavam em idade escolar, Paloma teve alguma dificuldade. Foi depois de muito procurar que achou uma escola que atendesse as necessidades distintas das meninas.

O espaço era uma casa enorme, com atividades nas áreas interna e externa.

Ana passaria desapercebida num jardim em plena primavera. Qualquer um a confundiria com uma flor. Não uma rosa ou flor vistosa. Estava mais para uma pequena, delicada com perfume tão discreto e único que dificilmente desagradaria alguém.

Enfrentava o mundo com sua graça ingênua e risonha. Era uma criança quieta e observadora. Nunca exigia atenção, nem disputava espaço com Fernanda, uma verdadeira amazona. Ana cabia em seu espaço. Corria como um riacho tranquilo, sem pressa, tornando a vida de quem estava ao seu redor fresca e doce.

Dispersava-se com facilidade. Diagnosticariam os especialistas como depressiva ou com déficit de atenção. Aqueles mais atentos diriam: "Bobagem, Ana fala com os olhos!". Seus olhos refletiam o melhor de quem a observava. Estar ao lado dela era sentir a vida como uma avó sorridente, esperando você no portão, com um abraço apertado e quente, com cheiro de pão caseiro e bolo de cenoura com cobertura de chocolate.

Para encontrar Ana na escola, bastava procurá-la na cozinha ou no teatrinho de fantoche, dentro da casa.

Fernanda tinha um espírito livre. Voava com seus longos cabelos soltos. Era fácil encontrá-la. Bastava seguir seu riso contagiante. Estava sempre em grupo. Gostava de subir nas árvores para comer frutas ou estar mais perto de algum ninho de passarinho.

Era muito habilidosa na argila e na pintura com os dedos. Seus desenhos eram os mais coloridos e repletos de histórias para contar. Quase nunca estava onde deveria estar. Era ágil e só ficava um pouco mais quieta quando ouvia o som do berimbau e do violão, tocados num grande tanque de areia. Quando resolvia cantar, seus pés a acompanhavam numa dança cheia de piruetas.

As irmãs quase não se viam na escola. Pertenciam a mundos paralelos. Porém, todo final de tarde, depois de um dia de brincadeiras, elas se encontravam. Essa era a melhor lembrança que Paloma tinha da infância de suas gêmeas: elas davam as mãos e corriam para abraçar a mãe, cheias de saudades e novidades para contar.

quinta-feira, 5 de março de 2015

Linha 9, Esmeralda da MPB.





Meu primeiro texto é uma homenagem a quem me acalantou com sua voz tranquila e seu violão doce: meu pai.
Mapa do Transporte Metropolitano de São Paulo.



Estavam todos lá, no trem das onze. Esparramados pelo vagão que não estava tão cheio assim, afinal era tarde.

Marina, uma jovem morena com sua saia vermelho-sangue, estava no centro do vagão. Seu rosto estava carregado numa maquiagem pesada. Não tivera tempo de retirá-la após a última apresentação da noite. Certamente seria repreendida pelo marido que não gostava de ver o rosto da esposa pintado.

Ao lado de Marina, estava Madalena. Mada, como era chamada, estava novamente embriagada: wisky com guaraná. Entrou no trem dançando: dois pra lá... dois pra cá. Sentou-se perto da janela para observar a lua girar.

Wilson estava sentado em frente a Marina, admirando sua beleza. Era garçom. Tinha aquele cheiro típico de média e pão com manteiga à beça.

Num canto afastado, quase escondido, estava Paulo com seus fones de ouvido, aparentemente distraído. Era como um Pierrot apaixonado, cantarolando baixinho:"as rosas não falam... exalam o perfume que roubam de ti..."

Maria, ao lado de Paulo, procurava seu marido entre os homens do vagão. Voltava para casa abatida, desencantada da vida.

Camélia era viúva. Encontrou Joana, que estava apaixonada. Conversavam amenidades: "Olá, como vai?" "Eu vou indo e você, tudo bem?" "Quanto tempo..." "Pois é".

No outro extremo do vagão estava Jeca. José Carlos tinha saudades da sua terra. Viera para São Paulo em busca de um futuro melhor mas não esquecia seu passado. De que adiantava viver na cidade se a felicidade não o acompanhava? Tinha saudade do sabiá cantando no jequitibá. A estrada da vida era longa. Fechava os olhos cansados. As vistas iam escurecendo.

Na estação "Largo Treze", entrou João. Tipo valentão, brigão, daqueles que não prestam atenção e nem pensam na vida. Ficou em pé ao lado do malandro que ia para a Lapa. Era daqueles: regular, profissional, com gravata e capital. João olhou para ele e perguntou se sabia o resultado do futebol.

O Arnesto foi quem respondeu: "O Curintian perdeu o jogo". Ele estava arrasado perdera o jogo e o samba, marcado em sua casa. A chuva das últimas horas o impedira de sair do trabalho. Os amigos deviam estar furiosos com a falta de aviso. O celular de Arnesto, vejam só, ficou sem bateria!

E as estações chegavam. E as pessoas partiam.

No vagão restava apenas Carolina. Alheia, com seus olhos tristes. Estava grávida de Mônica e sozinha no mundo. O tempo passava na janela do trem e só Carolina não via.